Sentença que mudou a rota de uma vida
Dentre as milhares de decisões que proferi na carreira de juiz, há uma que me traz uma lembrança especial porque mudou a rota de uma vida.
A sentença a que me reporto veio a se tornar muito conhecida porque pessoas encarregaram-se de espalhá-la: por xerox, primeiramente; depois por mimeógrafo; depois por e-mail; finalmente, veio a ser estampada em sites da internet. Primorosos trabalhos de arte foram produzidos a partir do caso, por pessoas que não conheço pessoalmente: Odair José Gallo e Mari Caruso Cunha (versões sonoras e com imagens).
A protagonista do caso judicial chamava-se Edna.
Hoje, aos 77 anos, a memória visual me socorre. Sou capaz de me lembrar do rosto de Edna e do ambiente do fórum, naquela tarde de nove de agosto de 1978, há trinta e seis anos portanto. Uma mulher grávida e anônima entrou no fórum sob escolta policial. Essa mesma mulher grávida saiu do fórum, não mais anônima porém Edna, não mais sob escolta porém livre.
Após ouvir, palavra por palavra, o despacho que a colocou em liberdade, Edna disse que se seu filho fosse homem ele iria se chamar João Batista. Mas nasceu uma menina, a quem ela deu o nome de Elke, em homeånagem a Elke Maravilha.
Edna declarou no dia da sua liberdade: poderia passar fome, porém prostituta nunca mais seria.
Passados todos estes anos, perdi Edna de vista. Nenhuma notícia tenho dela ou da filha. Entretanto, Edna marcou minha vida. Primeiro, pelo resgate de sua existência. Segundo, pela promessa de que colocaria no filho por nascer o nome do juiz. Era o maior galardão que eu poderia receber, superior a qualquer prêmio, medalha, insignia, consagração, dignidade ou comenda.
Lembremo-nos de Jesus diante da viúva que lançou duas moedinhas no cesto das ofertas:
“Eu vos digo que esta pobre viúva lançou mais do que todos, pois todos aqueles deram do que lhes sobrava para as ofertas; esta, porém, na sua penúria, ofereceu tudo o que possuía para viver.” (Lucas, 21, 1 a 4).
Edna era humilde e pobre. Sua maior riqueza era aquela criança que pulsava no seu ventre. Ela não me oferecia assim alguma coisa externa a ela, mas algo que era a expressão maior do seu ser. Se a promessa não se concretizou isto não tem relevância, pois sua intenção foi declarada. O que impediu a homenagem foi o fato de lhe ter nascido uma menina. Em razão do que acabo de relatar, se eu encontrasse Edna, teria de agradecer o que ela fez por mim. Edna me ensinou o que é ser juiz. Edna me ensinou que mais do que os códigos valem as pessoas. Isso que eu aprendi dela tenho procurado transmitir a outros, principalmente a meus alunos e a jovens juízes.
Segue-se a íntegra da decisão extraída da folha 32 do Processo número 3.775, da Primeira Vara Criminal de Vila Velha:
A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à Maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.
É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Quando tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si.
Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão.
Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.
Expeça-se incontinenti o alvará de soltura.
João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado. Foi um dos fundadores da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória. Tem participado de debates em universidades e em outros espaços. Seu mais recente livro é: Encontro do Direito com a Poesia – crônicas e escritos leves – GZ Editora, Rio de Janeiro.
XXX
Minha UFES
A criação da Universidade Federal do Espírito Santo marcou a entrada do nosso Estado numa nova etapa histórica.
Profissionais que forjaram seu espírito nos bancos de nossa Universidade foram os anunciadores dos horizontes que se abriam.
A UFES não é apenas um patrimônio dos atuais alunos, funcionários e professores, ou de professores e funcionários aposentados, ou de profissionais formados pela Universidade. É um patrimônio do povo capixaba.
A história da UFES acompanhou passo a passo a história espírito-santense nos últimos sessenta anos. Quando a liberdade foi suprimida no panorama nacional, ali na UFES germinou o grito de resistência. Professores não se submeteram à suposta autoridade dos que podiam submeter o corpo, mas não eram capazes de alcançar a alma. Nas salas, opunham-se à ditadura, criticavam o arbítrio, mesmo sabendo que as aulas estavam sendo gravadas pela Polícia Política exercida por um falso aluno. No DCE e nos diretórios acadêmicos das faculdades, heroicos líderes estudantis mantinham acessa a tocha da resistência.
Tenho título para reverenciar as seis décadas da UFES como ex-professor e ex-aluno. Neste artigo quero me lembrar do aluno que fui, prestar tributo a minha UFES. Ingressei no Curso de Direito assim que completei a idade mínima exigida por lei. Na posição de ex-aluno, desejo homenagear um professor que simbolicamente represente todos os outros. Da mesma forma vou relembrar um colega de turma que igualmente seja o representante dos demais.
Para a reverência aos professores escolho Jair Etienne Dessaune, catedrático de Direito Romano. Que professor dedicado e competente! Era rigoroso com os alunos, mas rigoroso consigno também. Jamais faltava a uma aula. Naquele tempo o aluno podia passar de ano ficando pendurado numa matéria. Dezenas de alunos ficavam pendentes com Jair Dessaune por não terem se debruçado com o devido cuidado à face do Corpus Juris Civiilis.
Para homenagear os colegas de turma elejo Demistóclides Baptista, o nosso Batistinha. Já naquele tempo de estudante ele era um líder sindical respeitado pelos colegas ferroviários e temido pelas armas do Poder. Batistinha era inteligentíssimo, portador de uma cultura que ia muito além do Direito. Era simples, modesto, amigo. Dialogando com ele aprendi muito. Batistinha entusiasmou-se com o então Papa João XXIII, que foi o primeiro Papa a exaltar o Socialismo numa encíclica. Observando o posicionamento de João XXIII nas questões sociais, com uma surpreendente guinada à esquerda, ele me disse: é João, você é católico e eu sou comunista, mas com este Papa nós vamos nos encontrar.
João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado, Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo e escritor.
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